Capítulo 9 Endogamia
Ceballos & Álvarez 2013. doi: 10.1038/hdy.2013.25
Vilas et al. 2019. doi: 10.1080/03014460.2019.1687752
9.1 Endocruzamentos \(\times\) exocruzamentos
Endogamia é a produção de descendentes do cruzamento de indivíduos ou organismos relacionados geneticamente (endocruzamentos), o que leva a um aumento da frequência de genótipos homozigotos em relação a frequência esperada em cruzamentos aleatórios.
A homozigose de alelos raros (a maioria recessivos) pode levar ao aparecimento de traços deletérios (viz., depressão endogâmica).
9.2 Causas de endogamia
9.2.1 Endogamia intencional
9.2.1.1 Estoques de laboratório
O endocruzamento sucessivo de animais tem sido usado para estabelecer linhagens genéticas “puras” para a pesquisa científica. Os experimentos conduzidos nesses assuntos são valiosos porque a variação genética não pode distorcer os resultados.
Rader 2004. ISBN: 9780691016368
Taft et al. 2006. doi: 10.1016/j.tig.2006.09.010
9.2.1.2 Estoques para melhoramento animal e vegetal
Em animais domésticos, o endocruzamento geralmente resulta em uma troca em que uma característica desejável é ampliada às custas de outra.
Por exemplo, a endogamia de gado leiteiro holandês (Holstein-Frísia) levou ao aumento da produção de leite, mas as vacas são mais difíceis de criar.
Zenger et al. 2007. doi: 10.1111/j.1365-2052.2006.01543.x link
Utsunomiya et al. 2013. doi: 10.1371/journal.pone.0064280 link
Mrode et al. 2019. doi: 10.1371/journal.pone.0064280 link
9.3 Freqüências genotípicas sob endogamia
Considere as sucessivas gerações de autofertilização em uma linhagem híbrida, cujas frequências alélicas iniciais \(p\) e \(q\) sejam idênticas.
As frequências genotípicas não estarão em equilíbrio de Hardy-Weinberg pois ao longo de algumas gerações irá existir uma deficiência de heterozigotos e um excesso de homozigotos.
Após \(n\) gerações de autofertilização, teremos:
- A frequência dos heterozigotos será
\[\frac {1}{2^n}\]
- A frequência dos homozigotos será \(\frac {1}{2^n}\); e
\[\frac {1- \frac {1}{2^n}}{2}\]
9.4 Coeficiente de endogamia
A quantidade de endogamia em uma população pode ser medida pela redução na heterozigosidade.
O Coeficiente de Endogamia (\(F\)) compara a proporção real de genótipos heterozigotos (\(H_{Obs}\)) com proporção genótipos heterozigotos esperada caso a população cruze aleatoriamente (\(H_{Esp}\)), de forma que:
\[\begin{equation} F=\frac{H_{Esp} - H_{Obs}}{H_{Esp}} \tag{9.1} \end{equation}\]
que é o mesmo que:
\[F=1 - \frac{H_{Obs}}{H_{Esp}}\]
O coeficiente de endogamia (\(F\)) pode ser interpretado como a probabilidade de que dois alelos em um determinado locus sejam aleatoriamente idênticos por descendência (IBD).
Não há endogamia …
… quando a população se reproduz ao acaso, pois \(H_{Obs}=H_{Esp}\), e assim:
\[F=0\]
Há endogamia completa …
… quando não há heterozigotos na população, pois \(H_{Obs}=0\), e assim:
\[F=1\]
Há endogamia parcial …
… quando há heterozigotos na população, mas menos do que o esperado ao acaso, pois \(H_{Obs}\ne0\) e \(H_{Obs}<H_{Esp}\), e assim:
\[0<F<1\]
Também não há endogamia …
… quando há excesso de heterozigotos na população, pois .
9.5 Freqüências genotípicas sob endogamia
Assumindo que, para um locus dialélico, que \(H_{Esp} = 2pq\), podemos então definir a frequência real do genótipo heterozigoto em uma população endogâmica nos termos do coeficiente de endogamia, de forma que:
\[F = \frac {H_{Esp} - H_{Obs}}{H_{Esp}} = \frac {2pq - H}{2pq}\] Assim, temos que:
\[f(Aa) = H = 2pq - 2pqF\]
Perceba que a frequência do genótipo heterozigoto sob endogamia é descrescida em uma parcela \(2pqF\) da expectativa \(2pq\) de cruzamento aleatório, parcela essa que, como visto anteriormente, será acrescida nos procionalmente aos genótipos homozigotos.
Isso pode ser demonstrado assumindo a frequência real de heterozigotos em uma população endogâmica a partir do cálculo das frequências alélicas.
Assim, teremos para o alelo \(A\):
\[ f(A) = p = D + \frac{1}{2}H = p^2 + \frac{1}{2}(2pq - 2pqF)\]
A fórmula acima pode ser reescrita, assumindo que \(pq=p(1-p)=p-p^2\), de forma que:
\[f(AA) = p^2 = p - pq + pqF = p^2 +pqF\]
E para o alelo \(a\):
\[ f(a) = q = R + \frac{1}{2}H = q^2 + \frac{1}{2}(2pq - 2pqF)\]
E assumindo que \(pq=q(1-q)=q-q^2\), de forma que:
e
\[f(aa) = q^2 = q - pq + pqF = q^2 +pqF\]
9.6 Autozigotos e alozigotos
Na fecundação, podemos categorizar os zigotos em autozigotos ou alozigotos a depender da origem dos alelos em um locus gênico.
Autozigotos — formado por dois alelos que se originam de um ancestral comum por meio de acasalamento não-aleatório, i.e., idênticos por descendência (IBD).
Alozigotos — formado por dois alelos que provêm de diferentes fontes (até onde a descendência pode ser estabelecida), ou idênticos por estado (IBS).
A chance de formação de autozigotos em uma geração depende da chance de encontros de gametas no pool gênico, que intrinsecamente depende do tamanho da amostra, de forma que:
\[\begin{equation} P(Autozigotos)=\frac{1}{2N_e} \tag{9.2} \end{equation}\]
Todos os demais cruzamentos resultam em alozigotos, sejam eles heterozigotos ou homozigotos idênticos por estado, de forma que:
\[\begin{equation} P(Alozigotos)= 1-\left(\frac{1}{2N_e}\right) \tag{9.3} \end{equation}\]
9.7 Endogamia em genealogias
O coeficiente de endogamia também pode ser utilizado para expressar a probabilidade de encontro de alelos idênticos por descendência (IBD) em uma prole de endocruzamento em genealogias.
Assim, o coeficiente de endogamia de um indivíduo \(X\) da genealogia é dado pelo grau de parentesco entre seus parentais até o(s) ancestral(is) em comum, de forma que:
- Se o(s) ancestral(is) em comum não é(são) endogâmico(s):
\[F_X = \sum \left( \frac{1}{2} \right)^n\]
Onde \(n\) é o grau de separação entre os parentais até o ancestral em comum (ver Figuras 9.7 e 9.8).
- Se o(s) ancestral(is) em comum é(são) endogâmico(s):
\[F_X = \sum \left( \frac{1}{2} \right)^n \cdot \ \left( 1 + F_A \right)\]
Onde \(F_A\) é o coeficiente de endogamia do ancentral comum.
9.8 Endogamia ao longo das gerações
Como visto anteriormente, a chance de formação de autozigotos em uma geração depende do tamanho efetivo da população (\(N_e\)).
Seja \(\Delta F\) a variação no coeficiente de endogamia de uma geração para a outra, temos que:
\[\Delta F = \frac{1}{2N_e}\] Assim, o coeficiente de endogamia na geração atual \(t\) seria dado pela endogamia produzida na formação de autozigotos nessa e pela endogamia que já existia na geração anterior \(t-1\) herdada pelos alozigotos, de forma que:
\[F_t = \frac{1}{2N_e} + \left( 1- \frac{1}{2N_e} \right)F_{t-1}\]
ou
\[F_t = \Delta F + \left( 1- \Delta F \right)F_{t-1}\]
Assim, o coeficiente de endogamia na geração seguinte \(t+1\), pode ser expresso como:
\[F_{t+1} = \Delta F + \left( 1- \Delta F \right)F_{t}\]
As equações acima, aplicadas de forma recorrente, podem ser usadas para estimar o coeficiente de endogamia produzido em função do número de gerações \(t\) decorridas, de forma que:
\[F_t = 1 - \left( 1- \frac{1}{2N_e} \right)^t\]
Desta forma, dado tempo suficiente, i. e., \(t \rightarrow \infty\)), todas as populações finitas, irão eventualmente se tornar completamente endogâmicas.
9.9 Depressão endogâmica
A depressão endogâmica é a redução da aptidão de uma determinada população devido à endogamia, a qual envolve dois mecanismos.
O aparecimento de características desvantajosas através do encontro de alelos recessivos deletérios na descendência de um cruzamento endogâmico; e
O aumento da aptidão dos heterozigotos.
Quando dois indivíduos relacionados se acasalam, a probabilidade de alelos recessivos deletérios emparelhados com a prole resultante é maior quando comparada a quando os indivíduos não relacionados se acasalam.
Assim, é possível estimar o risco relativo de um indivíduo em herdar alelos idênticos por descendência, dada simplesmente a razão entre a frequência do genótipo homozigoto dado o coeficiente de endogamia da população e a a frequência genotípica esperada sob cruzamento aleatório.
Considerando que a estimativa de risco relativo é predominantemente utilizada para genes recessivos, temos que:
\[{Risco \ Relativo} = \frac{ q^2 \left( 1-F \right) + qF }{ q^2 }\]
Por exemplo, na população humana, foi demonstrado que a taxa de mortalidade infantil é 4% maior em nascimentos de pais que são primos de primeiro grau do que em nascimentos de pais não aparentados, enquanto em aves, O fracasso da eclosão dos ovos tende a aumentar com o coeficiente de endogamia dos pais (Figura /(ref?)(fig:inbreedingdepression))
9.10 Evitando a endogamia
A hipótese da evitação da endogamia postula que certos mecanismos se desenvolvem dentro de uma espécie, ou dentro de uma dada população de uma espécie, como resultado da seleção natural e sexual, a fim de prevenir a reprodução entre indivíduos relacionados naquela espécie ou população.
Embora a endogamia possa impor certos custos evolucionários, a abstenção de endogamia, que limita o número de parceiros potenciais para um determinado indivíduo, pode infligir custos de oportunidade.
9.10.1 Reconhecimento de parentesco
O reconhecimento de parentesco é o mecanismo pelo qual os indivíduos identificam e evitam o acasalamento com membros intimamente relacionados.
Por exemplo, os genes do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) podem e são usados para discriminar entre indivíduos aparentados e não-relacionados
Desta forma, esses mecanismos favorecem acasalamentos heteroespecíficos.
9.10.2 Dispersão
A dispersão é adotada por algumas espécies como forma de separar os parentes próximos e evitar a endogamia.
Contudo, movimentos de longa distância podem acarretar riscos de mortalidade e custos energéticos.
9.10.3 Maturação sexual tardia
A maturação sexual tardia da prole na presença dos pais é outro mecanismo pelo qual os indivíduos evitam a endogamia.
Cenários de maturação atrasada podem envolver a remoção do genitor original do sexo oposto, como é o caso de leoas que exibem estro mais cedo após a substituição de seus pais por novos machos.
9.10.4 Cópulas extra-par
Em várias espécies, as fêmeas se beneficiam ao acasalar com vários machos, produzindo assim mais descendentes de maior diversidade genética e potencialmente de qualidade.
Fêmeas que estão ligadas a um macho de baixa qualidade genética, como pode ser o caso de endogamia, são mais propensas a se envolver em cópulas extrapar para melhorar seu sucesso reprodutivo e a capacidade de sobrevivência de sua prole.
Pusey & Wolf 1996. doi: 10.1016/0169-5347(96)10028-8
Manning et al. 1992. doi: 10.1038/360581a0
Szulkin & Sheldon 2008. doi: 10.1098/rspb.2007.0989
O’Riain et al. 2000. doi: 10.1007%2Fs002650000249
Petrie & Kempenaers 1998. doi: 10.1016/S0169-5347(97)01232-9
9.11 Exercícios
9.11.1 Exercício 1 - Coeficiente de endogamia
Considere as três populações abaixo.
\(A_{1}A_{1}\) | \(A_{1}A_{2}\) | \(A_{2}A_{2}\) | |
---|---|---|---|
População 1 | 125 | 250 | 125 |
População 2 | 50 | 30 | 20 |
População 3 | 100 | 500 | 400 |
Qual o coeficiente de endogamia (\(F\)):
Na população 1?
Na população 2?
Na população 3?
Qual população apresenta maior nível de endocruzamento?
9.11.2 Exercício 2 - Endogamia na genealogia
O heredograma abaixo mostra um indivíduo X produzido por um cruzamento de “meio-primos de terceiro grau” (os pais são primos completos pela parte materna, e meio-primos pela parte paterna).
Calcule o coeficiente de endogamia da paciente X, considerando que:
Nenhum dos ascedentes diretos é fruto de um casamento cosanguíneo.
Seu avô A, por parte de mãe, é filho de um casamento entre primos de primeiro grau.
Qual é o risco relativo de X apresentar uma doença autossômica recessiva, como anemia falciforme, cuja prevalência pode chegar a 1:500 indivíduos em populações africanas (Xiao & Lauschke, 2021).